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quinta-feira, 3 de julho de 2014

RELIGIÃO - O papa diferente

Quando o cardeal Ângelo Roncalli foi eleito acidentalmente, em 1958, e se tornou o Papa João XIII, o "Papa Bom", uma camareira de Roma fez algumas perguntas para a filósofa Hannah Arendt, que lá estava:  "Senhora, esse papa era um verdadeiro cristão. Como podia ser isso? E como aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro? Ele primeiro não teve de ser indicado bispo, e arcebispo, e cardeal, até finalmente ser eleito como papa? Ninguém tinha consciência de quem ele era?"

Bem, a resposta à última das três  perguntas da reflexiva camareira parece ser "Não" - disse Arendt. Ninguém entre os cardeais do conclave tinha consciência clara de quem era Ângelo Roncalli, até porque ele foi escolhido para ser um "papa provisório e transitório". Foi eleito por não haver consenso a respeito dos verdadeiros "papabile" iniciais.

João XXIII foi uma completa  surpresa durante seu breve pontificado, de 58 até 63, quando realizou a mais profunda reforma interna e doutrinária da Igreja em muitos séculos, tornando-a mais popular e, ao mesmo tempo, um pouco mais moderna. O catolicismo expandiu-se numérica e qualitativamente como nunca sob esse papa verdadeiramente  cristão.

A eleição do Papa Francisco teve algumas diferenças de contexto histórico e os cardeais sabiam quem ele era e de onde vinha. Foram buscar um papa do "fim-do-mundo"  - do Terceiro Mundo -, como ele mesmo assinalou ao passar de arcebispo Mario Jorge Bergoglio a 266° pontífice da Igreja Católica, primeiro nascido em continente americano, primeiro não-europeu em mais de 1200 anos e o primeiro papa jesuíta.

A profunda crise atual por que passa a Igreja, que vai de escândalos financeiros no Banco do Vaticano até os casos notórios de pedofilia em várias paróquias do mundo todo, passando pela ascensão das rivais denominações pentecostais, levou o colégio de cardeais a correr um risco calculado de oferecer o nome de alguém bem diferente do antecessor que renunciou, Bento XVI, o sisudo e dogmático cardeal alemão Joseph Aloisius Ratzinger.

Em quê o Papa Francisco é diferente? Por que a burocracia da Igreja correu um risco ao escolhê-lo? As respostas não são fáceis, mas estão evidentes hoje para todos as diferenças, a começar pela escolha do seu nome, inspirada na frase que lhe disse seu amigo brasileiro, o cardeal d. Claudio Hummes, ao cumprimentá-lo pela eleição : "Não se esqueça dos pobres". Ele não tem esquecido e o estilo de vida mais franciscano que adotou revela sua disposição de colocar a Igreja menos ao lado dos ricos e potentados, como esteve por séculos. Depois do interregno ultra-conservador dos papas João Paulo II e Bento XVI,  esse jesuíta simpático e amante do futebol é uma lufada de ar fresco.

As instituições e suas burocracias tendem a escolher como seus representantes e líderes os mais fiéis aos seus interesses e valores administrativos. Muitas vezes, os premiados são os mais submissos às regras políticas da instituição e os mais medíocres. Quase todas as instituições e organizações conhecidas funcionam assim. Daí, a surpresa da camareira romana e da filósofa Hannah Arendt diante da escolha de um "verdadeiro cristão", que poderia levar a Igreja a resgatar princípios originais da instituição e,portanto, a revolucioná-la.

Essa é outra característica de um "grupo de dependência" como a Igreja, isto é, um grupo que elege um Messias, uma doutrina e a disposição fideísta para seguir um mestre e seus dogmas. Quando cresce e se distancia do Mestre original, esquece suas origens e se prende a rituais e regras rotineiras para manter-se sólida. O resgate e a evocação da origem costumam ser subversivos. Daí a surpresa diante da evocação de Francisco de Assis, que contrasta muito com o luxo do trono ocupado por Bento XVI, mais a tolerância da burocracia católica com o novo Papa e com a mudança de rumos que pode imprimir em seu pontificado.

A resistência à sua presença por parte dos conservadores do mundo todo assemelha-se muito à que sofreu João XXIII, acusado pela direita de  "bonzinho com o comunismo" e até mesmo de "marxista". Agora , a revista conservadora "The Economist" acusou-o de "seguir Lênin", o líder soviético que escreveu o livro "Imperialismo, etapa superior do capitalismo", em que assinala a tendência monopolista e concentradora de renda do capitalismo moderno. O Papa apontou a concentração de renda capitalista e os monopólios, e os criticou por aumentarem a desigualdade e a pobreza,  o que tem sido apontado até mesmo por economistas insuspeitos de "marxismo", como o norte-americano Paul Krugman  e o francês Thomas Piketty. Somente o que chamo de  a "burrice conservadora" ou a ma fé poderiam levar à conclusão de que ele seria "leninista".

Sua frase sobre a existência de cristãos gays , dizendo "quem sou eu para condenar um homossexual que procura espiritualmente Cristo?", tocou em outro tema polêmico em que tem sido fustigado pela estupidez conservadora. Sua atitude, porém, começa a se difundir pela corpo da própria Igreja e vários católicos relatam nas redes sociais que já presenciaram padres falando em defesa das uniões homoafetivas do púlpito em suas missas.

Ao mesmo tempo, o Papa acaba de excomungar os membros da Máfia, responsáveis pelo assassinato de uma criança de três anos na Sicília, e também expulsou das funções eclesiásticas o ex-núncio da República Dominicana, o polonês Jozef Wesolowski, condenado por pedofilia comprovada naquele país. As suas atitudes firmes fazem crer que o Papa continuará a condenar o crime, sobretudo quando cometido pelo próprios membros da Igreja, mas não ditará regras sobre as condutas humanas em geral. Sob seu pontificado, espera-se que a Igreja interfira menos na vida privada das pessoas e seja mais tolerante em seus juízos morais.

No início, o Papa Francisco era um enigma. Existiam até acusações apócrifas de que teria sido leniente com a Ditadura Militar argentina quando era bispo. Depois descobriu-se que foram feitas até montagens fotográficas maldosas, dele ao lado do ex-ditador Jorge Videla, de quem "seria o confessor". Nada disso se comprovou. Sabe-se apenas que ele negociou a preservação dos Direitos Humanos naquele país, o que o fazia dialogar com freqüência com os ditadores dos anos 70 e inicio dos 80.

Francisco vem humanizando o papado e é possível esperar que promova um gradual "aggiornamento" dos cânones da Igreja, como fez João XXIII. Tudo para evitar a decadência da instituição. É uma política mais inteligente,  para dizer o mínimo, do que a do intelectual sofisticado Bento XVI.

Se assim for, não é  preciso ser católico e nem mesmo acreditar piamente, para dizermos como os cristãos: "Deus o proteja". Vai precisar.


* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog : imaginarioradical.blogspot.com e uma página pública no Facebook: www.facebook.com/reinaldolobopsi


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